terça-feira, 21 de setembro de 2010

MOMENTOS DE REFLEXÃO: ESCUTAR

MOMENTOS DE ESCUTA -  Mulheres na  Praça  - Colômbia -  Foto Luz Marina









 

Como solicitado estou anexando neste blog algúns dos textos usados nos nossos encontros.
Um abraço a todas


Textos de Reflexão: Encontros de Mulheres Empreendedoras

ESCUTATÓRIA
Rubem Alves


Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma“. Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver e preciso que a cabeça esteja vazia.

Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia - a enfermeira nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas isso não é nada...“ A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.

Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma". Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus.

Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes: “Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas.“ Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não “evangélico“), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo.

É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.“ Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.“ Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.“ E assim vai a reunião.....
(O amor que acende a lua, pág. 65.)

Fonte
http://www.caosmose.net/candido/unisinos/textos/escutatoria.htm#http://rubemalves.locaweb.com.br/hall/wwpct3/newfiles/escutatoria.php

4 comentários:

  1. Gostei muito deste artigo. Estou encaminhando para meu grupo, ao mesmo tempo em que lhes agradeço pela escuta de ontem e de como foi importante para mim.

    Conheço uma igreja católica no Flamengo que tem um atendimento que tem exatamente este nume "ESCUTA" mas ao que sei é pouco procurado talvez por ser pouco divulgado, mas foi criado justamente por terem muitas pessoas que procuravam o padre apenas para ter quem as escutasse.
    Falamos melhor sobre isso em nosso encontro na segundo que vem
    Abraço

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  2. Lindo, amiga. É no silêncio da alma que a gente se faz parte da Natureza, reconhecendo as suas falas e movimentos. Vamos compartilhar este texto com a rede de Paraty?

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  3. Maravilhoso texto. Tão verdadeiro. Só conseguimos ouvir o outro quando o nosso eu está em sintonia com a paz interior.
    Vou levar este texto para a AME de Campos
    Obrigada
    Marta Suely

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  4. A escuta como diz Jacques Salomé no seu livro RELAÇÃO DE AJUDA pressupõe uma RENÚNCIA, uma renúncia a:
    -Falar
    -Se Comunicar
    -Explicar
    -Convencer
    -Responder
    torna-se difícil escutar quando não estamos dispostos a nós escutar primeiro ou quando estamos centrados nos valores externos e não conseguimos nos colocar lugar do outro.

    Obrigada pelos comentários, estarei em breve postando outros artigos ou textos para que sejam compartilhados com os grupos de mulheres.
    Abraços a todas!!!

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